segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Entrevista explosiva




Ele s Sem medo de ser
Ele s


Ele expõe com a convicção dos autênticos e é verdadeiro com a convicção dos corajosos. No morro ou no asfalto, é o mesmo sujeito, o mesmo negão, como gosta de se autodefinir. Nesta entrevista, faz afirmações chocantes, ao lado de colocações divertidas, e revela não só seu profundo senso ético e poético, como sua natural alegria de conviver.

Paulo Lins parece levar a vida a sorrir.

Entrevistadores: Marina Amaral, Natália Viana, Andréa Dip, Flávia Castanheira, Ligia Morresi, Ferréz, Guto Lacaz, Mauro de Queiroz, Rafic Farah, Ronye Quintieri, Wagner Nabuco e Sérgio de


Trecho 1


Marina Amaral - Como foi o seu começo, como o menino Paulo Lins virou escritor?
Vamos lá, vou fazer uma regressão... Na verdade, escrever, pra mim, era uma necessidade. Ao contrário das outras crianças, quando eu fazia uma coisa errada minha mãe falava: "Ó, então não vai escrever!" Depois que passava um tempo, quando eu já não estava mais nervoso, ela mandava eu escrever. Comecei escrevendo poemas, depois letras de músicas, depois samba-enredo, ganhei dois sambas-enredo na Cidade de Deus, num bloco que tinha lá...

Andréa Dip - Isso, criança?
Não, isso eu já tinha 17 anos. Mas a gente ganhava o samba, e o meu parceiro é que cantava o samba, porque minha mãe não deixava eu ir pro ensaio, que era perigoso e tal. Nem vi o desfile nem fui aos ensaios, porque minha mãe não deixou. Mas da minha casa dava pra escutar o samba cantado. E foi assim, eu sempre escrevi, aí, depois, fui pra faculdade, aí veio o movimento de poesia independente, nos anos 80, e fomos fazendo poesia, vendendo de mão em mão, fazia camiseta com poesia, cartão... foi o boom da poesia dos anos 80. O Paulo Leminski teve uma grande importância na minha vida, fui pra Curitiba com ele, que me incentivou muito, no Rio eu vendia os livros dele, Catatau, Agora É que São Elas. Quando ele ia dar palestras no Rio e eu sempre ia às palestras, aí ele falava? "Poxa, aqui no Rio esses negão careca ficam me dando dinheiro, vai pegar mal pra mim". Enfim, eu e a literatura é uma coisa que vem desde criança.

Marina Amaral - Você nasceu na Cidade de Deus?
Não, nasci no Estácio.

Marina Amaral - É um hábito, no morro, criança que na favela escreve?
Toda criança nasce artista, toda criança desenha, lembra? E depois vai perdendo essa coisa... agora, leitura é meio difícil. A relação com a leitura tem que vir antes de o cara começar a ler. Antigamente tinha os famosos casos, histórias de assombração, os mais velhos se reuniam na porta de casa e contavam história um pro outro, e eu peguei um pouco disso. Hoje não tem mais, tem televisão o tempo todo, as pessoas não se reúnem mais, ou então estão na birosca bebendo. Eu adorava histórias de assombração. Dormia com medo, mas no outro dia estava lá de novo pra ouvir. E tinha também as fábulas, as histórias, mas isso se perdeu. Então fiquei ilhado, eu e algumas pessoas, porque só eu que lia, então isso dificulta um pouco a relação.

Ferréz - E a relação com seus amigos, você era um garoto tido como normal ou tinha diferenças até de rolê, não sair junto por causa da literatura?
Eu era meio otário! Sempre fui meio otário, não sei jogar bola, soltar pipa... o samba é que me salvou. Porque na favela tem a questão do respeito, o cara que bate uma bola é respeitado. Eu era otário, não sabia dançar! Aprendi a sambar depois, e aprendi a tocar instrumento de escola de samba. Toco todos os instrumentos de escola de samba, já desfilei em bateria, fiz letra de samba e aí eu peguei um conceito, com a rapaziada do conceito. Mas a escola, o estudo, a biblioteca foram me afastando um pouco, porque você não tinha referência pra levar uma idéia com o pessoal.

Marina Amaral - Mas quem lia na sua casa, seu pai, sua mãe?
Quem lia muito era minha tia Celestina, que lê até hoje. Ela falava pra gente ler, morou com a gente. Agora, também peguei uma escola boa. A expansão do ensino começou na Revolução de 30, mas no morro, na favela não tinha escola até 1950, 60... você tinha que descer, o pessoal do morro descia - e tinha uma relação difícil com o pessoal da classe média. Na minha escola, a Azevedo Sodré, tem uma foto dos alunos, da turma toda, e só tem eu de negão. É, porque vinha pouca gente do morro. Como a escola, quando teve a ditadura militar, deteriorou, aí nasceu o ensino privado. E o ensino privado, que era o contrário, era pra quem não passava na escola pública, ganhou força.

Wagner Nabuco - Falando de educação, como você acompanhou no Rio a questão dos CIEPs do Darcy Ribeiro?
A idéia do CIEP, de fazer uma escola onde a criança fica o dia todo, é interessante. Mas o CIEP é horroroso, me desculpe o Niemeyer, um projeto de cimento e ferro, cinza. E as salas não têm parede inteira! Dei aula no CIEP, foi meu pior momento como professor.

Marina Amaral - Você deu aula bastante tempo?
Dez anos. Português e literatura, da 5a à 8a, 2o grau, até a universidade. Universidade, dei aula aqui em São Paulo, em Mogi-Mirim.

Marina Amaral - Então você é formado em letras?
Sou formado em letras.

Guto Lacaz - E o Cidade de Deus, você procurou uma editora ou foi procurado?
Fui procurado. Na verdade, é o seguinte: eu militava na poesia, nunca tinha pensado em escrever um romance. Aí, conheci uma garota, hoje já é uma jovem senhora, que trabalhava com a Alba Zaluar, que desenvolvia um projeto chamado "Crime e Criminalidade nas Classes Populares". Então tinha que entrevistar bandido, daí o pessoal: "Chama o Paulo Lins". Universitário que conhece bandido, né? Eu já estava a fim da menina e entrei. Acabou que fiquei - e ela também - dez anos trabalhando com a Alba. Eu não pensava em escrever um romance, fui mais por amor à pesquisa. Para ajudar a Alba Zaluar a desenvolver um projeto de antropologia sobre a favela, porque eu tinha acesso ao pessoal da malandragem, eram todos meus amigos e da minha idade. E comecei a entrevistar e ela querendo que eu escrevesse antropologia, sociologia, isso eu não escrevo. Não sou sociólogo nem antropólogo. Eu disse: "Posso fazer um poema". E ela: "Ah, então faz um poema, escreve alguma coisa sobre a sua vida". Fiz um poema, demorei três meses para fazer, e ela mostrou ao Roberto Schwartz, aqui em São Paulo. Ele ligou pra mim, fiquei todo contente, "pô, o Roberto ligou pra mim", era um crítico, eu estava na faculdade, já tinha lido quase a obra toda dele, na faculdade você é obrigado a ler o Roberto. E ele perguntou: "Permite publicar o poema na revista do Cebrap? Publicou o poema e deu o aval pra eu escrever um romance. Aí, minha vida complicou. Escrever um romance não é brincadeira, não.

Ferréz - Isso, você estava onde?
Eu estava na Cidade de Deus.

Ferréz - E o romance foi todo escrito lá?
Não. Escrevi em Cabo Frio, fui para uma casa maluca, estava desesperado porque não conseguia acabar o romance. Era uma casa na beira da praia, sem luz nem água, um barraquinho da Ione de Ribeiro Nascimento, ela emprestou a casa e fui eu e meu filho morar lá. No começo era maravilhoso, a onda do mar batendo, dormia com a marola, acordava, corria na praia, nadava. Depois de um mês, aquela solidão, aquele barulho do mar me irritava, não tinha mulher naquele negócio, não comi ninguém, não tinha nada. Deu seis meses, voltei pro Rio.

Guto Lacaz - O livro é mais autobiográfico?
Não, é imaginativo. Romance é que nem tijolo, é um atrás do outro. Eu falava: "Vou escrever tantas páginas por dia". Comecei com cinco. Aí, caiu pra três, depois ficou uma.

Sérgio de Souza - Levou quanto tempo?
No processo levei de seis a sete anos, mas fiquei dez anos envolvido com o livro. Eu parava, voltava, reescrevia várias vezes. Datilografia! Depois que fui ter computador, eu sou velho!

Marina Amaral - Quantos anos você tem?
Eu tenho 44, calibre de revólver!

Ferréz - E o que você usou da pesquisa da Alba?
Na verdade, é o seguinte: se eu fosse contar a realidade como ela era, seria impublicável.

Sérgio de Souza - Se fosse no livro? E aqui, você pode contar?
Aqui eu posso contar. A realidade não cabe na literatura. Você não pode pegar a realidade e transformar em literatura, senão vira documento, vira reportagem. Se você contar a vida de cada personagem tal como ela é, no fim não vai. Então, tem coisas que estavam acontecendo na Cidade de Deus no momento em que eu estava vivendo ali, na década de 60, e eu fazia colagem, pegava o astral e inventava, tem muito mais criação do que narrar tal como é. Eu estava a fim de fazer ficção. Já vinha da poesia, já estava envolvido com isso. Eu era poeta concreto, como todo mundo foi. Nos anos 80, todo mundo era concretista, a gente lia tudo do Augusto de Campos, Haroldo, Décio Pignatari, as traduções, as transcrições, vivia discutindo aquilo, aquela briga deles com o Affonso Romano Sant´Anna, com Ferreira Gullar, que foi a grande polêmica, em que o Roberto Schwartz se meteu também. Eu estava vivendo aquele momento, que era de uma efervescência cultural muito grande. Depois disso não teve mais uma polêmica grande na literatura, uma "briga" de intelectuais. Isso é muito do Brasil, o intelectual do Brasil é muito parado. Eu estava em Cuba agora, no prêmio Casa das Américas, daqui do Brasil fomos eu e o Moacyr Scliar, para julgar os brasileiros. Tinha uns sessenta intelectuais da América do Sul, da América Central, da do Norte, não. Tinha até uma americana, mas não estava representando o país, e você vê que os intelectuais latinos são muito ativos, têm uma participação política muito forte. E aqui no Brasil, o intelectual, a universidade, que é tão importante, ela fica meio de fora da discussão, do debate.

Guto Lacaz - Cidade de Deus estigmatizou a sua vida? Agora, você vai ter de escrever só sobre esse assunto ou tem outros planos?
Vamos botar Machado de Assis, Guimarães Rosa, José Lins do Rego... Às vezes, quero mudar, mas José Lins do Rego, por exemplo, vamos ver os romances dele, só com O Moleque Ricardo é que ele saiu do engenho; o Machado de Assis é Rio de Janeiro, aquela coisa da existência; o Guimarães Rosa é o sertão. Fiquei muito preocupado com isso, foram dez anos de pesquisa, escrever um livro só e jogar esses dez anos fora? Tem muita coisa para dizer ainda sobre esse universo.

Mauro de Queiroz - O Estácio tem uma mística: "Se alguém quer matar-me de amor, que me mate no Estácio". Você não escreveu nada sobre o Estácio?
O livro que eu vou escrever agora passa pelo Estácio, mas o Estácio está perigoso. No Estácio. o bicho pega.

Mauro de Queiroz - Estou falando "daquele" Estácio.
Vou escrever sobre "aquele" Estácio, vou passar por lá porque tem a zona do baixo meretrício, que era interessante - no livro do Sérgio Cabral, o pai, Escolas de Samba no Brasil, ele conta várias histórias que me interessaram, sobretudo que o Nelson Cavaquinho e o Cartola faziam show na zona.

Sérgio de Souza - No Mangue?
É, no Mangue, e também cantavam na rua Maia Lacerda. Eu morava na São Cláudio, passava com a minha mãe e via aqueles caboclos tocando no bar, ela mudava de rua porque dizia que eram todos bandidos, marginais, eu olhava aqueles caras tocando e bebendo e tinham mesmo um aspecto meio marginal, tocando violão de manhã, virando a noite, depois vim saber que esses bandidos eram Cartola, Nelson Cavaquinho, essa rapaziada, e pensei: "Vou escrever sobre isso". Porque isso foi quando eu estava com 4 anos, eram os anos 60, época do golpe de 64.



Trecho 2


Flávia Castanheira - Mesmo com o sucesso, a polícia te pára, te dá dura?
Uma vez estávamos eu, o Marcelo Yuca e o Macarrão do Planet Hemp - também, com essa "quadrilha"... Aí, quando o policial viu o Marcelo Yuca, a gente vinha do estúdio, o carro cheio de instrumentos, os caras ficaram uma hora com a gente. Um deles já tinha sido pegado fumando maconha por aquele mesmo policial, que perguntou: "Você fuma?" Ele disse: "Fumo". "O quê?" "Cigarro e maconha." Perguntou pra mim: "Você fuma?" Eu não, não fumo maconha, e o Marcelo Yuca também não. Também, só negão, né? Uma outra vez, eu estava saindo pra filmar Cidade dos Homens, 5 e meia da manhã, moro em Santa Teresa, desci pelo Cosme Velho, ali pela casa do Roberto Marinho, e vai o motorista me pegar, o Mantra, que também é negão, o assistente é negão e eu, diretor - com a Kátia Lund, negão. O cara parou o carro e o documento estava vencido, o motorista falou: "O Paulo Lins está aqui, o cara do Cidade de Deus". E o policial: "O que, ele está aí? Sai do carro todo mundo!" Multou, revistou todo o carro. Numa outra, o policial perguntou: "Você é o Paulo Lins, né? Meu amigo, sai do carro e fica bonitinho".

Sérgio de Souza - Você está sujo com a polícia?
Não estou sujo, não. Eles pegam, dão uma geral, mas nunca me molestaram. Tem policial que me cumprimenta também. Tem um em Santa Teresa que passa no bonde, me vê e grita: "Paulo Lins!"

Natalia Viana - E a bandidagem?
Com a bandidagem é tranqüilo, sempre foi.

Ferréz - O Paulo se sai muito bem dessas situações. Uma vez, eu estava no Rio, no hotel, ele foi me buscar e sentou no sofá, tomando uma cervejinha, e o cara me falou: "Por favor, espera um pouco que estão chamando a polícia, tem um rapaz suspeito aqui no hotel". E eu: "Pô, é o Paulo Lins, cara, do Cidade de Deus".
Também, do jeito que eu estava, não posso reclamar. Não gosto de loja, não sou consumista, roupa geralmente as pessoas me dão, também não tenho problema de andar mal arrumado, tem dia que eu saio com remela no olho, e naquela situação eu estava pedindo, estava com uma samba-canção.

Marina Amaral - Você estava só com uma samba-canção?
Cueca samba-canção e pulôver...

Wagner Nabuco - Na infância, na adolescência, você percebia racismo na classe média em geral ou só da polícia.
Tem certos lugares em que até hoje eu vou e me sinto meio acuado. Aqui em São Paulo tem lugares em que eu vou que tem muito segurança nas ruas e ficam te olhando, pegam naquele cinturão, aqui assim. E no Rio, Ipanema, Leblon, Barra, quando vou em certos lugares, não me sinto dali, me sinto mal, até hoje tenho isso, quando criança ainda mais.

Sérgio de Souza - Você conhece a periferia daqui?

Conheço, o Ferréz me levou.

Sérgio de Souza - Qual seria a diferença entre o morro e a nossa periferia?
A periferia daqui parece a Baixada Fluminense, não tem morro, mas o clima é o mesmo, só que aqui é muito grande. Aqui tem mais nordestino e lá tem mais negro. O Brasil é a questão do mestiço, do índio e do negro, são trezentos anos de colonização, quatrocentos de escravidão, duas ditaduras e o Brasil é isso. Pela história do Brasil, está muito bom hoje, se for pensar que tem 503 anos e teve quatrocentos anos de escravidão.

Guto Lacaz - Você é um otimista?
Pelo andar da carruagem, pela sua história, acho que o Brasil até está indo bem.



Trecho 3


Natalia Viana - Você escreve porque acredita em mudar a sociedade com os escritos?

Na verdade, eu queria que o pessoal da favela lesse. Tem muitas pessoas lá, tanto potencial, tanta gente boa que, se tivesse um pouco mais de instrução, um pouco mais de acesso...

Guto Lacaz - A fama não te deu esse instrumento?
A Globo Filmes e o Sesc me chamaram para fazer um projeto na Cidade de Deus. Eu vou encaminhar esse projeto. Mas é muito pouco. É aquele negócio, é acabar com a fome. Se o presidente fala "vamos acabar com a fome", é porque é um país que passa fome. O resto é brincadeira. Como é que vai pedir dinheiro pra educação, como é que vou pensar em livro, em educação, se nego está passando fome? Agora, eu acho que um projeto de leitura no Brasil tem de ser implementado, não só pros pobres, pros ricos também, porque o livro forma cidadãos.

Marina Amaral - Você acha que essa juventude seduzida pelo tráfico é seduzida só pelo dinheiro ou tem um potencial político, transformador, que não está sendo canalizado para outro lugar? Que de repente um PSTU subisse o morro e pegava a meninada pra uma coisa política, ou o negócio é a grana e o glamour do traficante sendo bandido?
Ninguém vira bandido de uma hora pra outra, "vou ser bandido", isso não existe. Existe, Ferréz?

Ferréz - Não.
Não é assim, não, o processo é lento, doloroso, cruel. É devagar e pega crianças na idade escolar. Ninguém quer ser bandido porque é duro ser bandido, não é fácil.

Marina Amaral - Mas não tem um fascínio pelo Comando Vermelho, por exemplo?
É lógico que tem um fascínio, porque é criança. Se o PSTU fosse na favela, e desse resultado... Um dia, um moleque falou pra mim: "Vou sair pra maladragem". Eu digo: "Por quê?" "Porque não vou carregar peso, não vou ser trocador, não vou ser porra nenhuma." "Vai estudar." "Vou estudar, como? Em casa não tem comida, como é que eu vou estudar?" Morreu, era meu camarada, conheço a família toda dele.

Marina Amaral - Mas e se o PSTU subisse o morro e desse resultado?
Se desse grana, se desse poder, mas isso não acontece. Agora, é lógico que depois, por osmose com os presos políticos, os bandidos comuns tiveram uma ideologia, a Falange Vermelha foi troço bonito, conseguiu acabar com a violência na cadeia, mandou carta pra a Anistia Internacional, a história do CV também é bonita. O Japonês fala isso no filme do João Moreira Sales, começaram a dividir as coisas e acabou com a violência na cadeia. Por exemplo, se você chega numa favela por um comando, tem leis mas você vive seguro. Se você não se meter - não estou defendendo bandido, não, estou falando o que é realidade -, em qualquer favela que você morar, se você não se meter com a malandragem ela não se mete com você. Vai quem quer.

Marina Amaral - Mas não te obrigam a esconder bandido, armas, esse papo que a gente escuta?
Isso é viagem. Vai quem quer.

Rafic Farah - Eu queria chegar no fascínio pela bandidagem.
Todo o adolescente tem fascínio. O Ed Rock fala isso na música dele, que o adolescente se espelha em quem está mais perto. Mas é o seguinte: não é muita gente, não, são poucas pessoas. O problema da favela é o álcool, não é a cocaína nem a maconha, e ninguém fala isso. As famílias ficam desorganizadas por causa do álcool. Quantas pessoas morrem de cirrose, quantos jovens que bebem.

Marina Amaral - Mas você acha que existe um potencial revolucionário, por exemplo, o Marcinho VP com aquela tentativa política, você acha que é pura mentira?
Não. O Marcinho é meu amigo.

Marina Amaral - Então, você acha que aquele movimento dele era real?
Acho. O Marcinho VP é uma pessoa que falava da sociedade com uma clareza muito grande, e existe muita revolta hoje em dia, muita gente revoltada. Atiraram agora em dois hotéis, no Glória e no Meridien, aí vi uma entrevista do chefe da rede hoteleira dizendo que o Rio de Janeiro perdeu 30 milhões porque ia ter um congresso da ONU aqui e perdeu 30 milhões. Pra onde ia esse dinheiro? Lá pro pessoal que atirou? Ia pro favelado? Não ia, então, meu amigo, nego está revoltado, e acho que é de direito o sujeito pegar e seqüestrar, a situação que o sujeito vive, que passa fome, é de direito o cara dar tiro. No Rio tem menos, em São Paulo tem mais, muita gente que aparece com carrão importado, mas aqui a periferia está longe.

Ferréz - Você acha que é de direito roubar quem tem?
Acho.

Natalia Viana - E matar?
Acho. Estou falando uma coisa politicamente incorreta, vagabundo vai cair em cima de mim e eu sei disso. E não vou responder. Mas é assim. Vai no hospital! A minha mãe morreu por falta de atendimento médico, ela ia no hospital e marcavam para um, dois anos depois, morreu do coração. Eles davam aqueles remedião e ficava dois minutos e pronto. Não tem assistência médica, não tem comida, não tem dignidade nenhuma, não tem casa, não tem nada.

Natalia Viana - E você não ficou revoltado, não pensou em matar?
Fiquei. Escrevi Cidade de Deus.

Flávia Castanheira - Em algum momento da adolescência você se envolveu com a criminalidade?
Tem um amigo meu que falava assim: "Pô, Paulo Lins, se tu não fosse favelado, tu ia ser viadinho, ia morar no Leme, no Leblon...". Mas, vem cá, é muito difícil a pessoa entrar na criminalidade, muito difícil.



Trecho 4


Ligia Morresi - Mas volta ao filme, o que achou errado no Dadinho?

O Dadinho é meio lombrosiano. Acho que o Lombroso baixou no Dadinho, acho que o Dadinho nasceu muito ruim. Não tinha motivo pra ele ser tão ruim assim. Isso no filme. No livro, não.


Ferréz - Eu queria saber o que sobrou das amizades da Cidade de Deus hoje e o que é o Paulo Lins hoje, fora da Cidade de Deus.
Eu sou isso que está aqui. O Paulo sou eu que você conhece. Na Cidade de Deus não sobrou amizade. As amizades são as mesmas. Quem é amigo, é amigo. Agora, são 200.000 pessoas. Não sou amigo de todo mundo. E tem amigo, como de todo mundo aqui, que passa pela sua vida e volta. Depois que eu fiquei famoso - sou uma pessoa famosa, né? sou famoso! -, tem amigos de vinte anos que nunca mais vi e que querem ser meus amigos de novo, não dá! Agora, os amigos de verdade continuam sendo meus amigos.

Ferréz - Continuam indo na sua casa, participando da sua vida, até onde abrir a mente pro mundo te distanciou?
Não. As pessoas novas... no avião, por exemplo, entro no avião, todo mundo me reconhece e ficam olhando pra minha cara assim... mas é normal. Isso não me atrapalha. Não tenho problema de ser famoso, estou tranqüilo, vou à praia, ao supermercado. E também tem o seguinte: não sou superfamoso, não sou a Xuxa.

Sérgio de Souza - Você é feliz?
Não. Feliz é o papa, feliz é o Lula. Feliz é o Bush. Não, tô brincando. Acho que ninguém é feliz, nem triste, né?

Ferréz - Nem com a realização do trabalho cem por cento, o reconhecimento do trabalho?
Não, sofre muito, bicho. É muito ataque, processo, porrada, o Tom Jobim estava certo, sucesso no Brasil é uma merda. É assim: quando o livro saiu, tudo certo, rolou dinheiro, o livro bateu recorde, aí nego acha que eu tô rico. Eu não tenho grana pra pagar, eu tenho processo na Justiça, de várias pessoas. Imagina, são quinhentas personagens.

Ferréz - Foi por isso que você mudou o livro na segunda edição?
É. Porque não vai dar, não vou poder mais andar. Quando saiu o negócio do Oscar, rezei pra não entrar. Aí eu estava no carro, com minha mulher e minha filha, veio um sujeito bêbado: "Paulo Lins, eu sou parceiro, tu não ganhou o Oscar, mas tu é do coração. O Oscar brasileiro é meu. Você falou de mim...". Tem pessoas assim, que falam isso. Lá na favela acontece. Um cara foi preso. Fui criado junto com ele, aí ele mandou recado me pedindo: "Fala a verdade". Pediu pra eu falar a verdade. Aí fico assim pensando, o que eu faço?, não posso falar a verdade no livro.

Marina Amaral - Mas que processos são esses?
Processo, todo mundo fala: "eu sou fulano", "eu sou sicrano". Depois que surgiu o filme, antes não. Tem um caboclo que pediu 900.000 de direitos e não tem o nome no livro.

Natalia Viana - Mas os nomes são os verdadeiros?
Teve nome que eu botei o verdadeiro. Mas não são as pessoas, eu estava numa situação muito infantil. Sou apaixonado por livros, queria que o pessoal lesse. Aí tem um lá que chegou pra mim e falou: "Mas, então, Paulo Lins, tu vai fazer um livro, mas ninguém lê aqui". "E se eu botar o nome de algumas pessoas?" Aí ele disse: "É, bota o nome de algumas pessoas". Eu disse: "Mas não é a pessoa, eu criei, inventei esse personagem". "Bota os nomes, bota os nomes, que o pessoal vai ler." O cara é leitor, é escritor, advogado, acreditando nessa coisa que o pessoal vai ler... Não quero que o pessoal leia só Cidade de Deus, que leia só livros de esquerda, quero que leia Fernando Pessoa, Machado de Assis, Maiakóvski, Baudelaire, Heidegger...

Ferréz - Então, você foi influenciado para pôr o nome real das pessoas?
É, falaram pra mim: "Se você não botar os nomes, ninguém vai ler". Aí eu botei o nome. Mas não são esses personagens. Eu criei. Mas ninguém leu, não adiantou nada, só veio processo.

Sérgio de Souza - Que autor ou atores fizeram a sua cabeça?
Fiquei encantado com Balzac, Dostoievski, aí tem o Marçal Aquino, tem o Mauro Pinheiro, do Cemitério de Navios. Tem Guimarães Rosa, Lima Barreto, Machado de Assis. José Lins do Rego tem o Fogo Morto, esse livro é de uma poesia... É tripartido, eu fiz tripartido, são três histórias, eu copiei esse livro, roubei. Só que botei na versão urbana. Recomendo aqui assim: antes de ler o Cidade de Deus, leia Fogo Morto.

Mauro de Queiroz - Graciliano?
Graciliano também é outro. O Graciliano, rapaz! Vidas Secas, São Bernardo - é, roubei muito dali também. Roubei do Lima Barreto, do Dostoievski... ah, tem que roubar...

Ferréz - Tem um amigo meu, o Ademir, que diz que o Marçal Aquino escreve o que a maioria das pessoas não reconhece, que só a gente que é xarope percebe. O Marçal escreve uma história e por baixo tem uma outra história que só a gente vê. Você acredita nisso?
O Marçal é um grande escritor brasileiro. Tenho esse privilégio: até artigos de jornal eu mando pra ele corrigir, ele corrige na hora e manda de volta. Mas antes do Marçal tenho duas pessoas que são fundamentais na minha carreira. Eu só escrevi o livro por causa de duas pessoas. Não foi por causa do Roberto Schwartz, não foi por causa do Paulo Leminski e não foi por causa da Alba Zaluar. Foi por causa da Virgína de Oliveira Silva e por causa da Maria de Lourdes da Silva. A Maria de Lourdes foi a fundamental. Se eu não estivesse junto com ela, o livro não sairia. O nome dela eu vou repetir: Maria de Lourdes da Silva, pernambucana, historiadora, mãe da Mariana, minha filha. Ela desenhou o livro na minha cabeça, falou "faz isso, isso, isso", corrigiu o livro. A Virgínia deu forma. Uma deu conteúdo, a outra deu forma. Eu daria co-autoria a Maria de Lourdes, mas ela não quis. Ela é co-autora do Cidade de Deus. É mulher, é por isso que eu gosto de mulher. Nordestinas, as duas.


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